Hoje iniciamos um novo ciclo: vamos viajar pelo nosso admirável mundo novo. A expressão é emprestada ao universo de Aldous Huxley, mas refere aqui ao mundo que habitamos agora: tecnologicamente desenvolvido, num progresso que a humanidade repele e aceita em momentos distintos. Playtime, além de uma brilhante comédia, fala também sobre isso: é uma projecção da Paris futurista, erguida a betão e texturas metalizadas, onde turistas se passeiam em centros comerciais e a tecnologia invade a vida quotidiana.
Tati afirmou que, depois de Playtime, olhou para os restaurantes de forma diferente, e pretendia que, para o seu público, também os aeroportos se transformassem depois de visto este filme. Portanto, o filme alimenta- se destas novas estruturas e costumes, mas não é, entenda-se bem, um filme com uma perspectiva didáctica, ou paternalista, sobre a modernidade tecnológica. Do início ao fim, estamos imersos neste mundo e olhamo-lo através da câmera de Tati, que é sempre curiosa, quase infantil, pura: e há porventura alguns rasgos de melancolia, como quando a Torre Eiffel aparece – e a única vez que surge em todo o filme – reflectida na porta de um centro comercial.
A nível formal, Tati retirou a perspectiva individual que dominava os seus filmes (centrados na mítica personagem do Monsieur Hulot) e empreendeu algo colectivo, onde o protagonismo é dividido e cada plano pode conter mais que uma acção. O som, protagonista de outros seus filmes, volta a ter papel de destaque e é central nalguns dos gags que empreende. Os diálogos são rudimentares e quase inexistentes: Playtime é quase uma amostra do cinema que teríamos se o advento do som servisse a imagem e não o diálogo.
De resto, são sabidos os vastos problemas financeiros que o filme trouxe ao realizador. Virtualmente todos os cenários foram construídos de propósito, e as filmagens demoraram muito mais que o previsto. A dada altura, Tati hipotecou as suas propriedades imobiliárias, assim como os direitos da sua filmografia (só os reaveria cerca de uma década depois), para poder concluir um filme que, originalmente, tinha mais meia hora que a versão definitiva. Todo o processo foi uma intensa luta para que francês retivesse e afirmasse a sua liberdade criativa, e é sabida a sua insistência em fazê-lo exactamente desta forma megalómana: caso contrário, não se sentiria, na sua idade já avançada, motivado para fazer cinema.
Infelizmente, por uma série de factores intrínsecos e outros alheios – talvez algumas intromissões do clima político-social da época -, o filme acabou por ser algo incompreendido, e viu-se na altura, como ainda hoje ainda o é, um objecto estranho na linearidade temporal da França cinematográfica (e Europa, já agora). Outros factores ainda sugerem essa inaptidão ao tempo contemporâneo: o ritmo contemplativo da primeira parte do filme; a vontade de seguir uma ideia cómica, não necessariamente em busca da gargalhada, mas apenas por uma certa satisfação existencial; a abundância de acção em certos planos, que requerem um olhar atento e arguto, e sem a garantia de vir a ter uma conclusão satisfatória – tudo isto é paradoxal com o paradigma moderno de actividade, produtividade, proactividade. É, de certa forma, um filme que se alimenta de incertezas. Seja como for, Playtime sobreviveu ao teste do tempo e é projectado hoje, ao olhar de gerações que ultrapassam uma modernidade que parecia futuro à altura. Que terá para nós Monsieur Hulot?
Em registos semelhantes, ou outras direcções a considerar:
☞ Airplane! (Jim Abrahams, David Zucker, 1980) | formalmente parecido a Playtime, com o triplo da velocidade e com um décimo do sentido.
☞ Les vacances de Monsieur Hulot (Jacques Tati, 1953) | um filme anterior de Jacques Tati, sem a carga ideológica de Playtime e mais dedicação visual aos gags.
☞ Nineteen Eighty-Four (Michael Radford, 1984) | para um comentário tecnológico mais pessimista, mas extraordinariamente relevante (assim como o livro!).